segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Quando se fala do que não se sabe

geralmente dizem-se asneiras e fica-se mal na fotografia. Claro que a maioria das pessoas, não estando por dentro do processo de formação médica, pode perfeitamente achar que o senhor tem toda a razão e que só falta é vontade para arranjar médico para toda a gente. Ora vamos lá a ver o seguinte:

Ponto número 1: a formação de um médico especialista compreende, para além da licenciatura/mestrado integrado em medicina, 1 ano de formação em 5 áreas nucleares da medicina, denominado Ano Comum, seguido pelo internato complementar de especialidade, em que é ministrada a formação correspondente à especialidade escolhida. Durante o internato complementar, a prática clínica é tutorizada, o que pressupõe a existência de um médico especialista que orienta, avalia, ensina e supervisiona as acções clínicas do formando. Tendo em conta que este tipo de formação deve ser tendencialmente realizada com um ratio de 1:1, ou seja, 1 formando para 1 tutor, o aumento do número de médicos disponíveis tem de ser sempre paulatinamente, sob pena de diminuir de forma substancial a qualidade da formação e, subsequentemente, dos cuidados prestados aos utentes;

Ponto número 2 - a integração de um recém-licenciado/mestre em Medicina no Serviço Nacional de Saúde pressupõe a inscrição na Ordem dos Médicos e a realização da Prova Nacional de Seriação (PNS), que dá acesso aos supracitados Ano Comum e Internato Complementar de Especialidade, e estas regras valem para toda e qualquer pessoa nas condições mencionadas, tenham elas realizado a sua formação nas escolas médicas portuguesas ou no estrangeiro. Aos candidatos cuja língua materna não seja o português é, ainda, aplicada uma prova de comunicação, para que se assegure o pressuposto de uma eficaz comunicação entre si e os tentes que consultarão no futuro. Assim, os portugueses a estudar no estrangeiro têm, simplesmente, de seguir os passos mencionados para acederem ao Serviço Nacional de Saúde, em pé de igualdade com os seus colegas cuja formação foi realizada em Portugal. Não entendo, portanto, a proposta de criação de contractos para os estudantes de medicina portugueses a realizar formação no estrangeiro, para que ocupem vagas de formação complementar em Medicina Geral e Familiar. Parece-me que isso é passar por cima das regras de um concurso público, como é o de acesso à especialidade, e privilegiar um grupo em detrimento de outro, abolindo a ideia de igualdade de oportunidades introduzida pela PNS.

Ponto número 3 - não sei se há necessidade de existirem tantas vagas de formação de base, em medicina, como as que correntemente existem, e duvido que o aumento, na minha opinião desproporcionado, que foi feito, em alguns casos, assegure a qualidade formativa anteriormente proporcionada. De qualquer maneira, e segundo afirma o estudo divulgado ontem no Público, o défice de médicos de família já se faz sentir neste momento e agravar-se-á nos próximos anos. No entanto, o efeito, na quantidade de clínicos, deste boom de abertura de vagas em cursos de medicina só se fará sentir, no mínimo, daqui a 7-8 anos, no caso da MGF. Parece-me, por isso, que, quando se diz que é preciso aumentar o número de médicos de família, se deve também dizer que as medidas a tomar nesse efeito levarão anos a serem eficazes, tendo elas como destinatários quer alunos da formação básica quer já licenciados/mestres.

Ponto número 4 - é frequente ouvir entre os estudantes das escolas médicas portuguesas comentários sobre o descrédito a que votam as especialidades de Medicina Geral e Familiar e Saúde Pública, entre outras. Não me interessa aqui discutir as razões que levam aí mas o que é facto é que uma imagem negativa em pessoas com tão tenra formação propicia, no meu ponto de vista, a fuga para outras especialidades e a vontade de mudar de especialidade a alguns que ficaram em MGF ou Saúde Pública. Acho, sinceramente, que a imagem que chega aos estudantes, ao longo do curso, é negativa; que é uma especialidade "em que não se sabe muito de nada", que "não é valorizada", nomeadamente pelos utentes e pelos colegas, em que se "passa mais tempo a passar receitas e a tratar de papeladas" do que em actividade clínica propriamente dita; muito poucas vezes vi, como aluna, pegarem na MGF como a especialidade que tem oportunidade de ter contacto com um amplo espectro de patologias e populações, que é a primeira ligação entre qualquer pessoa e o SNS, que dá a oportunidade ao clínico que a exerce de conhecer os seus doentes como nenhum outro e de poder adaptar as opções terapêuticas da maneira que mais os beneficiam, que pode ter um real impacto sobre, mais do que a prevenção da doença, a manutenção da saúde, actuando sobre as faces biológica, psicológica e social de cada seu utente, porque só ele tem lhes tem o acesso e a disponibilidade para actuar. Mais do que meramente aumentar o número de vagas de especialidade em MGF e Saúde Pública, acho que urge alterar a imagem do clínico geral, e parece-me que devemos fazê-lo de forma mais incisiva nas escolas médicas. Para que queiramos ir para MGF e Saúde Pública e não tenhamos de ir para la, porque não deu para outra.

E tenho dito.

Sem comentários:

 
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