Ainda no outro dia falávamos disto

"(...) é mentira que se possam ler os pensamentos de alguém no seu rosto, é completamente falso. Talvez numa época muito remota a cara fosse, com efeito, o espelho da alma. Mas há já demasiado tempo que os gestos estão domesticados, todas as expressões são uma impostura, todos os risos uma convenção, todas as lágrimas uma mentira consentida. A cara já não é um espelho mas apenas a máscara que fabricámos para nos resguardarmos: há séculos que não somos senão figurantes nesse eterno baile de máscaras ou Commedia dell'Arte a que chamam vida. Não é verdade? Às vezes, pomos uma cara, noutras ocasiões pomos outra, consoante nos convém: a sorridente de Arlequim, a chorosa de Pierrot, a inocente de Colombina, sem esquecer a do meditabundo Polichinelo e a do tonto Pantaleão... E ninguém ignora que isso é tão-só uma mascarada, mas todos nos iludimos a pensar que, por detrás de um sorriso de cartão, se esconde um afecto sincero, e debaixo de uma expressão compungida está um sinal de sofrimento quando, por experiência própria, sabemos que ninguém se permite revelar dos seus sentimentos mais do que aquilo que a sua vontade deseja.
(...) 'decifrar a cara de alguém quando está a interagir com outros é uma perda de tempo. Só é possível ler caras em repouso, minha querida, e de preferência quando não se sentem observadas. Quando se fala, mente-se e não só com palavras, mente-se com o riso, com o olhar: as máscaras, não te esqueças, são sempre máscaras. No entanto, por detrás das máscaras está a carne e sobre ela o tempo escreveu a nossa história, mesmo contra a nossa vontade. Por isso, quando o sorriso de Arlequim se desvanece ou a lágrima de Pierrot seca, aparece a verdade que com eles tentávamos ocultar.'"

Carmen Posadas, Brincadeira de Crianças

Se acreditar que não há coincidências, um dia hei-de perceber que este livro tinha de vir de férias comigo.